Autor do texto:
Jair Nguni - Historiador e militante do Movimento Negro de Campina Grande.
Segundo o Caderno de Educação Organizações de
Resistência Negra, o bloco afro Ilê Aiyê surgiu a partir de um grupo de jovens
negros (as) acostumados a promover atividades recreativas e culturais no bairro
da Liberdade, em Salvador. Conhecido pelo nome de Zorra, essa juventude negra
reunida em torno desse grupo sabia muito bem o que queria, pois acreditava que
era possível através da dança, da estética, da música e do canto combater o
racismo, buscar auto-estima para a raça negra e, por conseguinte, propor a
idéia de “reafricanização” do carnaval de uma cidade onde imperava de maneira
bastante forte o mito da democracia racial, bem como uma nítida segregação
espacial no carnaval de Salvador. Realmente, creio que não foi nada fácil para
aqueles negros e negras corajosos e
ousados, em plena ditadura militar, construir uma organização social, política
e carnavalesca com o objetivo de assumir símbolos identitários africanos. O
Ilê, no entanto, conseguiu apesar de todas as adversidades impostas pelo racismo realizar essa
verdadeira façanha no carnaval de 1975, ao fazer um desfile vestido com
fantasia de guerreiro axanti, portando nas mãos de seus integrantes tabuletas
de madeiras com palavras de ordem contra o racismo, inspiradas na luta do movimento negro dos Estados Unidos da América.
Posso citar, inclusive, os nomes de alguns negros e negras que ousaram cantar o orgulho
de ser negro (a) em plena Praça Castro Alves: Antonio Carlos dos Santos (Vovô),
Dete Lima, Lili, Ana Meira, Eliete, Apolônio de Jesus, Jailson, Aliomar, Macalé,
Sergio Roberto,Vivaldo, Ademário, etc.
Quando
afirmei
que não deve ter sido nada fácil para o Ilê realizar o seu primeiro
carnaval. Talvez, tenha sido pelo fato de saber de certas histórias que
nem sempre são de conhecimento do grande
público. Por exemplo, o primeiro nome que os fundadores do Ilê pensaram
para
criar a entidade foi Poder Negro numa clara alusão ao Black Power dos
afro-americanos. Entretanto, os fundadores do bloco afro foram
"aconselhados" por pessoas que trabalhavam na Polícia Federal a mudar
de nome,
pois a primeira proposta poderia ser identificada como coisa de
comunista.
Para fugir dessa repressão da ditadura militar, a saída foi adotar o
nome de
origem iorubá Ilê Aiyê, cuja tradução livre em português pode ser lida
como
Casa de Negro. Só que nada disso adiantou, visto que no primeiro desfile
deste
bloco afro “tinha mais policiais fora do bloco do que gente dentro”,
como disse
o próprio músico e educador do Ilê Sandro Teles em depoimento concedido
para a
Revista Caros Amigos. Na verdade, o Ilê para desfilar teve que passar
na Polícia Federal por uma verdadeira sessão de interrogatório e pressão
psicológica, diga-se a bem da verdade.
Ao
falar
sobre esses 40 anos de resistência do mundo negro como se diz lá em
Salvador. Também não podemos esquecer das críticas injustas e
tendenciosas que foram veiculadas por meio de uma nota do Jornal A
Tarde do estado da Bahia contra o
primeiro desfile do Ilê Aiyê. O título dessa nota publicada logo após a
passagem do bloco
pela Praça Castro Alves, sem assinatura, dizia: “Bloco Racista, Nota
Destoante.” O Ilê acabou sendo acusado de separatista por trazer para as
ruas de Salvador um "feio espetáculo" e por trazer um
problema racial que não fazia parte das relações sociais da nossa
sociedade
brasileira, segundo o conteúdo dessa nota divulgada no dia 12 de
fevereiro de
1975. É interessante observarmos, nesse contexto, como a classe
dominante da
Bahia é racista e hipócrita, pois quando analisamos a história do
carnaval na
sociedade soteropolitana, percebe-se que a segregação social e espacial
com recorte
racial sempre fez parte das relações entre brancos e negros. Vejamos,
por exemplo,
o jogo ou brincadeira do Entrudo na
sociedade escravista e patriarcal em que os rapazes brancos podiam jogar
farinha e água nos negros. Já os negros
tinham que brincar o Entrudo só entre o seu grupo étnico. Essa forma de
vivenciar o carnaval sem neutralizar as hierarquias raciais entre
brancos e
negros foi mantida no final do século dezenove, já que os clubes
carnavalescos
como Fantoches da Euterpe, Politeama e Cruz Vermelha realizavam bailes
para
seus integrantes majoritariamente brancos. E, no século vinte, antes do
surgimento do Ilê Aiyê no bairro da Liberdade os afoxés, batucadas e
cordões formados
por negros só podiam brincar carnaval em certos espaços reservados da
capital
baiana, a exemplo do Taboão, Baixa dos Sapateiros e Barroquinha. Será
que o
Jornal A Tarde nunca viu esse segregacionismo ser praticado pelos
clubes da elite branca de
Salvador contra nós negros, como fez por
tanto tempo o tradicional Clube Baiano
de Tênis ?
O
Ilê Aiyê, portanto, rompe com essa segregação espacial e étnica ao
propor um
novo estilo de vida ao povo negro de Salvador, tendo como meta a
valorização da
arte e cultura de origem africana historicamente tão desprezadas pelas
elites racistas, no Brasil. Na sua histórica trajetória de luta ainda
somos obrigados a reconhecer que algumas
ações sociais, educacionais e empreendimentos culturais fizeram deste
bloco afro referência de
luta contra o racismo neste país. Podemos
citar, em primeiro lugar, a criação da Semana da Mãe Preta, em 1979, que
surgiu
como forma de homenagear todas as mulheres negras que morreram lutando
contra a
escravidão, assim como para reverenciar a já falecida Mãe Hilda Jitolu,
chamada
por todos do bloco com muito respeito e reverência de grande guardiã da
fé e
da tradição africana, pois como todos nós sabemos o Ilê Aiyê nasceu
dentro do
terreiro de candomblé da própria Mãe Hilda Jitolu.
Essa
ação pioneira mencionada acima revela o compromisso político do afro Ilê com a recuperação e preservação da memória de
mulheres negras excluídas por essa historiografia eurocêntrica, excludente e
racista que sempre valoriza os eventos e acontecimentos históricos sob o ponto
de vista do homem branco europeu e brasileiro. Nesse sentido, vejo nesse tipo
de projeto uma tentativa de fazer das afrodescendentes protagonistas da
história, combatendo o sexismo e discriminação racial enfrentados pela mulher
negra em todos os setores da sociedade, sobretudo no campo da produção do
conhecimento histórico. Na maravilhosa canção
Negros de Luz, o compositor Edson Carvalho (Xuxu), chama a quilombola Zeferina
de heroína. Acotirene de guerreira princesa negra e Dandara de rainha da beleza. Com certeza, o
coral negro não seria o que é sem a criatividade, inteligência e talento de
tantos outros (as) compositores (as) que já morreram e de tantos que permanecem
vivos (as), contribuindo de forma genial para a existência política e cultural dessa
verdadeira realeza nagô. Cabe aqui citá-los: Buziga, Cissa, Mundão, César Maravilha,
Jailson, Apolônio, Ademário, Geraldo Lima, Paulinho do Reco, Miltão, Adailton Poesia,
Nem Tatuagem, Suka, Guiguio, Beto Jamaica, Itamar Tropicália, Alberto Pita, Cuiúba,
Marcos Boa Morte, Jorjão Bafafé, Môa do Catendê,Valter Farias, Reizinho,Valmir Brito,
Nelson Rufino, Odé Rufino, Gilson Nascimento, Gibi, Paulo Vaz, De Neve, Eloi Estrela,
Sandro Teles, Mario Pam, Cláudio do Reggae, Marito Lima e Gusa.
Outra
iniciativa exitosa envolvendo as relações de gênero. Foi a realização nesse mesmo ano de 1979 da Festa da
Mais Bela Crioula, uma festa que mais tarde passou a ser chamada de Noite da
Beleza Negra do Ilê Aiyê. Nessa festa o Ilê escolhe a Deusa do Ébano, não só
por ser bonita fisicamente, mas pelo fato de ser também uma mulher negra
consciente de sua negritude, orgulhosa de ser negra e sabedora de suas raízes
africanas. Portanto, ao fazer este tipo de concurso o bloco que valorizar a
beleza da mulher afro-brasileira, mostrando através dessa mulher de origem
africana o quanto o Bloco Afro Ilê Aiyê é repleto de exuberância, charme, elegância,
força e dignidade.
Gostaria
de concluir esse texto registrando o
belo trabalho social, musical e pedagógico com crianças e jovens do bairro da
Liberdade, por meio da Escola Mãe Hilda e da Banda Erê. Nessas ações
educacionais e culturais as crianças aprendem a cantar, dançar e tocar
instrumentos percussivos, além de aulas sobre cidadania e história das
tradições africanas. Esse modelo educativo de sucesso acabou indo parar em
outras escolas públicas de Salvador, fazendo do Ilê até hoje uma grande referência
de luta no combate às desigualdades raciais no campo da educação, graças ao
trabalho edificante e persistente de educadores e educadoras como Ana Célia da
Silva, Maria de Lourdes Siqueira, Jônatas Conceição (in memórian), Dete Lima,
Arany Santana, Lindinalva Barbosa, Hildelice Benta dos Santos, Jaime Sodré, Sandro
Teles, Durvalina Cerqueira, Lícia Barbosa, Jô Guimarães, Isabelle Barbosa, Dayse
Barreto, Valdina Pinto, etc.
Fico feliz e orgulhoso só pelo fato de saber que a minha
história de luta enquanto ativista do Movimento Negro de Campina Grande está
ligada ao PEP- Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê, já que por duas
vezes solicitei Cadernos de Educação e fui atendido com muito carinho e respeito por esse brilhante bloco afro. Agora, o que
me impressionou nessa história toda sobre os 40 anos de história do mais belo
dos belos foi a presença iluminada de uma
certa professora, escritora,
intelectual e pós-graduada em Estudos Africanos e Doutora em Educação pela UFBa no Projeto Agosto da Igualdade-215 Anos da
Revolta dos Búzios- Homenagem ao Poeta Arnaldo Xavier. Essa educadora chama-se
Ana Célia da Silva do Ilê, que queria pagar sua passagem para palestrar em
Campina Grande, mas eu não deixei por achar isso injusto, uma vez que Ana era a
minha convidada. Depois a professora
falou que queria chegar na quinta- feira para prestigiar João Jorge do Olodum e
Chico César no evento, embora a palestrar dela fosse acontecer somente no
sábado pela manhã. Vi nesse seu gesto nobre um exemplo de como deve ser uma
grande ativista do movimento negro. Vi uma mulher espirituosa, solidária e que
sabe muito bem representar com dignidade o Ilê Aiyê de Salvador.
Parabéns, maravilhoso bloco do prazer !
E Viva os 40 anos do coral negro!
Sítio oficial do Ilê Aiyê: http://www.ileaiyeoficial.com/
Há várias referências musicais ao Ilê Aiyê. Você conhece alguma? Comente aqui e compartilhe sua informação!
ResponderExcluirEste texto Jair Nguni, é uma bela forma de questionarmos a luta desse nossos irmãos para inserir na sociedade, existe uma grande democracia para que as pessoas entendam o que essa cultura negra tendem a nós influenciar no nosso modo de vida. Fica evidente nesse texto, uma vontade de fazer um trabalho social em que todos participam de maneira afetiva das questões que envolve todos tipo de pessoas, sendo elas brancas ou pretas, e para que isto aconteça é preciso de todo uma construção relacionando uma consciência sem racismo, sem indiferença, e pensando em mundo de pessoas iguais.
ResponderExcluiralém daquela famosa música do Gilberto Gil, regravada depois por Chico Sciense e Nação Zumbi e recentemente pel'O Rappa, eu ouvi recentemente uma música gravada em 1988 por Elba Ramalho, intitulada "Dragão Encantado", em que há uma referência ao Ilê Aiyê.
ResponderExcluirÉ muito bom saber que existe projetos que busquem esse respeito da identidade negra na nossa sociedade, isso além de mostrar que cada vez mais, dia após dia e possível formar uma sociedade que entenda que essa cultura teve e ainda tem uma enorme contribuição. Pena eu não conhecer nenhuma musica deles, mas vou pesquisar e passar, a saber, quais são.
ResponderExcluirMuito interessante mesmo, pois não conhecia este bloco e com certeza muita gente também não conhece. Esta ação promove um resgate às raízes afro-brasileiras que com a globalização foram sendo perdidas, modificando a nossa cultura ao ponto de não mais enxerga-las. Fico muito feliz por saber que a ação de pessoas comuns que tomaram a iniciativa de trazer para fora o orgulho de nossas raízes e é claro, com toda a animação.
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