domingo, 4 de maio de 2014

Respeitem meus cabelos, brancos! Um plano de aula para a diferença

Serviço:
Texto de autoria de Euzebio Carvalho

Introdução: apresentando o problema

A educação para as relações étnico-raciais passa, antes de tudo, pela relação com as características corporais que remetem à nossa origem cultural, à nossa vinculação étnica, enquanto grupo, enquanto povo. Por meio dessas características corporais somos identificados e nos identificamos. A cor de nossa pele, a estrutura do nosso cabelo, o conjunto das marcas fenotípicas que trazemos impresso no corpo que nos constitui enquanto grupo e como pessoas, indivíduos.

O cabelo é uma das marcas identitárias mais fortes que trazemos em nosso corpo. Por conta da forma de nosso cabelo somos rotulados. A aparência de nosso cabelo interfere na forma como os outros nos olham, tratam, recebem. Mas também como nos ignoram, nos maltratam. Olhares podem ser acusadores e reprovadores. É por isso que precisamos pensar um pouco sobre isso.

Nos ambientes escolares, essas situações são muito fortes. Estão sempre presentes. Todos nós temos a memória de situações de não aceitação das características de nossos corpos, pelos colegas da escola. É justamente nesse espaço e tempo da escola que devemos trabalhar para construir relações étnico-raciais saudáveis e positivas, livres de preconceitos e discriminações.

Algumas crianças sofrem por conta da forma como são tratadas. Esse sofrimento vai marcar sua subjetividade por muito tempo. A maioria das vezes, de forma dolorida e quase doentia. Por conta desses acontecimentos aprendemos a negar e a destruir muitas características que trazemos nos nossos corpos. 

Situações assim são provocadas pelos coleguinhas, mas também reforçadas pelos professores e professoras, pelos funcionários e pelos gestores da escola. São frequentes as situações em que a vítima de maus tratos são ignoradas. "Deixa isso pra lá", costumam dizer. "Fulano não teve a intenção..." defendem outros. Mas o sentimento ruim que foi plantado em nós continua a existir.

Frases como "cabelo de bombril" ou que temos "cabelo ruim" podem plantar em nós a vontade de destruir o nosso cabelo. Faz-nos sentir a vontade de ter um outro corpo; ser outra pessoa. Lentamente, somos "educados" a nos desgostar. A vontade de "não ser" destrói a nossa tranquilidade, o nosso bem estar no mundo. Passamos a alimentar o desejo de não ser como aparentamos ser, de não ter o que temos e que nos constituí. Sentimo-nos feios, pobres, gordos, desajeitados, deslocados, deficientes... diferentes. E percebemos que essa diferença provoca dor e sofrimento. 

O acúmulo de situações como essas, que se repetem constantemente, provoca apatia, falta de interesse pela escola, revolta, raiva, vergonha. Quantas mães não reclamam que seus filhos "não querem mais ir pra escola"?

No nosso interior, somos forçados a acreditar que é nossa responsabilidade ser diferente. Como se a diferença fosse nossa culpa; como se fôssemos responsáveis pela diferença que trazemos em nosso corpo. Na maioria das vezes, para não sermos mais tratados de forma ruim, começamos a querer mudar. Para não passar por uma situação dolorida novamente, aprendemos a negociar. Negamos o que somos: "eu não sou negro". Mudamos o que temos: "quero alisar meu cabelo". Para ser aceito dentro dos padrões (tidos como) "normais", apagamo-nos, negamo-nos. Construímos uma auto-imagem a partir da negação. Do que eu não sou, do que eu não quero ser. Ficamos a um passo de doenças psicológicas como a esquizofrenia, por exemplo. Tornamo-nos pessoas doentes mentalmente. É como se ficássemos sempre a espera de alguém olhar para nós e nos maltratar novamente. E todo mundo se torna um possível malfeitor.


Os objetos da aula e o respeito à diferença

O que fazer, então? Precisamos aprender a conviver (e não a "tolerar") as diferenças. Desde criancinhas. Ninguém precisa parecer comigo e eu não preciso parecer com ninguém para ser legal, bom, bonito, inteligente, correto, verdadeiro etc, etc. Podemos ser isso tudo, dentro e a partir da nossa diferença.

Para pensar um pouco sobre a relação de nosso cabelo com a identidade que construímos, com os sentimentos que alimentamos, com o bem estar bem, com a autoestima, trazemos uma proposta de atividade para ser realizada na escola.

A partir de uma ocorrência na escola, em que uma aluna se sentiu ofendida em sua diferença, o grupo do PIBID planejou uma série de intervenções. Em uma aula, apresentaremos a música "respeitem meus cabelos, brancos!" do cantor paraibano Chico César. Já conhece a música? E o cantor? Mesmo que sim, convidamos a clicar nos links e (re)ler/ouvir um pouco mais. Essa música é a penúltima faixa do quinto álbum do artista. 

O disco leva o mesmo título da faixa ("Respeitem meus cabelos, brancos") e foi , lançado em 2002. Segue a letra, retirada de seu sítio oficial:

Respeitem meus cabelos, brancos / 
chegou a hora de falar / 
vamos ser francos / 
pois quando um preto fala o branco cala ou deixa a sala com veludo nos tamancos / 
cabelo veio da África / 
junto com meus santos / 
cabelo veio da áfrica / 
junto com meus santos / 

benguelas, zulus, gêges, rebolos, bundos, bantos / 
batuques, toques, mandingas, danças, tranças, cantos / 
respeitem meus cabelos, brancos / 
respeitem meus cabelos, brancos / 
 
se eu quero pixaim, / 
deixa / 
se eu quero enrolar, / 
deixa / 
se eu quero colorir, / 
deixa /
se eu quero assanhar, / 
deixa, deixa, deixa a madeixa balançar

se eu quero pixaim, / 
deixa / 
se eu quero enrolar, / 
deixa / 
se eu quero colorir, / 
deixa /
se eu quero assanhar, / 
deixa, deixa, deixa a madeixa balançar
[Repete]
Fui claro?

Chico César assim se manifesta sobre a música:

Quando digo "respeitem meus cabelos, brancos" não falo só de mim nem quero dizer só isso. Debaixo dos cabelos, o homem como metáfora. A raça. A geração. A pessoa e suas idéias. A luta para manter-se de pé e mantê-las, as idéias, flecheiras. É como se alguém dissesse "respeitem minha particularidade". É o que eu digo, como artista brasileiro nordestino descendente de negros e índios. E brancos. Ou ainda no plural: minhas particularidades mutantes. Fala-se em tolerância. Pois não é disso que se trata. Trata-se de respeito (encarte do cd). 

 

Metodologia de ensino

A nossa proposta é a apresentação dessa música nas aulas de história, nas turmas do ensino fundamental (6º ao 9º ano). A metodologia de ensino a ser utilizada é a seguinte: 1º apresentar o áudio da música para todos ouvirem (sem mostrar a letra, ainda) e depois discutir a letra.

No primeiro momento, após a audição da música, é para os alunos:
  1. Identificar os instrumentos musicais utilizados;
  2. Identificar o gênero/estilo da música;
  3. Socializar as sensações que a música provocou em seu corpo (alegria, felicidade, diversão?)
Somente depois de feito isso, entregaremos a letra. No segundo momento, então, ouviremos novamente a música, acompanhando a letra impressa no papel. Depois, analisaremos o discurso construído pelos versos do autor, por meio das seguintes perguntas:
  1. Qual o tema da música?
  2. Quais versos remetem à História e Cultura Afro-Brasileira?
  3. Identidade, diversidade e diferença étnica: o que é e como ela aparece na letra?
  4. Consciência racial: o que é e como ela aparece na letra?
Depois de pensarmos sobre isso, é preciso finalizar a atividade fazendo o "fechamento" da análise. Para isso, propomos a seguinte pergunta orientadora:
  1. Quais os sentidos, argumentos, teses, ideias e pensamentos são construídos/defendidos por/nesse discurso?
As respostas dos estudantes podem ser orais, afinal o que se espera é o debate e a consequente reflexão sobre o problema apresentado. Mas, também podemos pedir as respostas por escrito, no caderno; podemos pedir desenhos para serem expostos etc.

Paralelo a essa atividade que acontece dentro da sala, na escola será montado um mural com várias fotografias coloridas e impressas de cabelos afro-brasileiros. O objetivo é marcar a diferença e as várias possibilidades de uso do cabelo, desde os penteados mais simples até as produções mais complexas.

Essas imagens serão pontuadas por "frases de efeito" escritas em pequenos cartazes que positivem e aprovem os cabelos afro-brasileiros, como por exemplo: "em terra de chapinha, quem tem black é rainha"; "meu cabelo não é ruim, ruim é seu racismo", "meu cabelo vem da África, junto com meus santos" e outras. Cada integrante do projeto ficou de levar suas frases de efeito.

Posteriormente, nos dias consecutivos, serão organizadas oficinas de penteados afro. Ao final, depois de uma palestra com a profa. Lídia Cruz, haverá um desfile para exibir os penteados realizados.

Material de apoio

Para o planejamento e preparação da aula, sugerimos a leitura dos textos:

O texto escolar: "Radiola PW: respeitem meus cabelos, brancos" do Professor Web

O artigo acadêmico: "Respeitem meus cabelos, brancos: música, política e identidade negra", de Felipe Trotta e Kywza, publicado na Revista Famecos (Qualis A2), de 2012.

O capítulo "Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural", de Nilma Lino Gomes, publicado no livro Educação como exercício de diversidade, de 2005 (volume 7, da coleção Educação para todos)

Além disso, indicamos também algumas montagens feitas a partir da música e disponíveis no youtube


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