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TEXTO 1
"Decisão judicial releva vídeos de intolerância religiosa, desconsiderando religiões afro-brasileira", texto de autoria de Fernanda Canofre postado originalmente no portal Global Voices, em 20/05/2014.
Ritual de iniciação das filhas-de-santo. Bahia, Brasil, 1951. Fotografia de José Medeiros/Acervo IMS |
No começo do ano, o Ministério Público Federal do Rio Janeiro entrou
com pedido na justiça para que o Google Brasil retirasse do YouTube
vídeos com mensagens que faziam “apologia, incitam e disseminam
discursos de ódio, preconceito, intolerância e de discriminação em face
de outras religiões, notadamente aquelas de matriz africana”.
De acordo com informações divulgadas pela Jus Brasil,
o site, no entanto, se negou a remover o conteúdo, justificando que
este “nada mais seria do que a manifestação da liberdade religiosa do
povo brasileiro” e que os vídeos discutidos não violariam as políticas
da companhia.
A ação seguiu para as mãos do Tribunal Regional Federal (TRF) e na
semana passada veio a surpresa: “o tribunal considerou que os cultos
afro-brasileiros não constituem religião e que as manifestações
religiosas não contêm traços necessários de uma religião”, negando outra
vez o pedido. A ação do MP resultou de uma denúncia feita pela Associação Nacional de Mídia Afro.
A matéria da JusBrasil explica ainda:
De acordo com o procurador Jaime Mitropoulos, “quem produziu e divulgou os conteúdos fez isso de acordo com suas crenças e com base em suas próprias representações da realidade”. A partir disso, os conteúdos pretendem estabelecer que há uma indissociável ligação do mal, do demônio ou de uma indigitada legião de demônios com as manifestações religiosas de matriz africana. Para se ter uma ideia dos conteúdos, em um dos vídeos, um pastor diz aos presentes que eles podem fechar os terreiros de macumba do bairro. Em outro, ele afirma que não existe como alguém ser de bruxaria e de magia negra, ou ter sido, e não falar em africano.
Ao definir o critério de “religião”, o juiz explicou que considerava
como tal as práticas que tivessem “a existência de um texto base (a
Bíblia ou Alcorão, conforme citado na decisão), de uma estrutura
hierárquica e de um Deus a ser venerado”. Além de desrespeitar
disposições de tratados internacionais, para o MP, a decisão judicial
também foi contra o princípio de liberdade de culto previsto na
Constituição brasileira. Logo após a decisão do TRF, o Ministério
Público entrou com recurso, encaminhando o caso a outro tribunal. O
promotor responsável pela ação, pede a remoção dos 15 vídeos publicados
no canal, multa de 500 mil reais por cada dia do descumprimento e que o
Google forneça dados do usuário e o IP do computador responsável por
subir os vídeos.
Rebatendo à alegação do juiz de que os cultos afro-brasileiros “não constituem religião”, o músico, escritor e pesquisador Nei Lopes publicou um artigo no Blog do IMS (Instituto Moreira Salles) no qual explicou os fundamentos dos cultos de origem africana e seu caráter religioso.
Após comentar a formação histórica e a essência em comum desses cultos, o autor saiu em defesa deles:
Esse corpo de doutrina, compreendendo muitos milhares de parábolas, foi transmitido de geração a geração entre os antigos babalaôs, na África e nas Américas. E nos tempos atuais, embora não unificado, já começa a ter circulação inclusive na internet.
A decisão judicial saiu uma semana depois da morte de Fabiane Maria de
Jesus, dona de casa linchada por suspeitas de sequestro e envolvimento
com “magia negra” ter comovido o Brasil.
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TEXTO 2
"MPF/RJ recorre ao TRF-2 para retirar vídeos de intolerância religiosa do YouTube", texto de autoria de Ministério Público Federal, originalmente publicado em JusBrasil, em (s.d.).
O Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF/RJ) recorreu ao
Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) contra decisão judicial
que desconsiderou as manifestações religiosas afro-brasileiras como
religiões e negou o pedido do MPF para que o Google Brasil retirasse do
Youtube vídeos de intolerância e discriminação religiosas. Ao negar o
pedido do MPF, a primeira instância da Justiça Federal no Rio de Janeiro
considerou que os cultos afro-brasileiros não constituem religião e que
as manifestações religiosas não contêm traços necessários de uma
religião. Essas características, na visão do juiz, seriam a existência
de um texto base (a Bíblia ou Alcorão, conforme citado na decisão), de
uma estrutura hierárquica e de um Deus a ser venerado
A decisão
causa perplexidade, pois ao invés de conceder a tutela jurisdicional
pretendida, optou-se pela definição do que seria religião, negando os
diversos diplomas internacionais que tratam da matéria (Pacto
Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, Pacto de São José da
Costa Rica, etc.), a Constituição Federal, bem como a Lei 12.288/10.
Além disso, o ato nega a história e os fatos sociais acerca da
existência das religiões e das perseguições que elas sofreram ao longo
da história, desconsiderando por completo a noção de que as religiões de
matizes africanas estão ancoradas nos princípios da oralidade,
temporalidade, senioridade, na ancestralidade, não necessitando de um
texto básico para defini-las, explica o procurador regional dos Direitos
do Cidadão, Jaime Mitropoulos, autor da ação.
No recurso
(agravo de instrumento), o MPF pede ao TRF-2, liminarmente, a retirada
imediata de 15 vídeos com mensagens que promovem a discriminação e
religiões de matriz africana. É sugerida a aplicação de multa de R$ 500
mil por dia de descumprimento. Além disso, é pedido também que a Google
Brasil forneça ao Ministério Público Federal informações sobre a data,
hora, local e número do IP dos computadores utilizados para postar os
vídeos com conteúdo indevido.
Atuação -
No começo do ano, o MPF expediu recomendação para que o Google do
Brasil retirasse os vídeos. Entretanto, em resposta, a empresa se negou a
atender a orientação, dizendo que o material divulgado "nada mais seria
do que a manifestação da liberdade religiosa do povo brasileiro" e que
"os vídeos discutidos não violariam as políticas da companhia".
"Repudiamos
veementemente a posição da Google Brasil, já que o MPF compreende que
mensagens que transmitem discursos do ódio não são a verdadeira face do
povo brasileiro e tampouco representam a liberdade religiosa no Brasil",
alerta o procurador.
A atuação do MPF é resultado de uma
investigação instaurada a partir de uma representação da Associação
Nacional de Mídia Afro, que levou ao conhecimento da Procuradoria
Regional dos Direitos do Cidadão conteúdos disponibilizados na rede
mundial de computadores, por meio do site YouTube, que estariam
disseminando o preconceito, a intolerância e a discriminação a religiões
de matriz africana.
As mensagens veiculadas fazem apologia,
incitam e disseminam discursos de ódio, preconceito, intolerância e de
discriminação em face de outras religiões, notadamente aquelas de matriz
africana. De acordo com o procurador Jaime Mitropoulos, "quem produziu e
divulgou os conteúdos fez isso de acordo com suas crenças e com base em
suas próprias representações da realidade". A partir disso, os
conteúdos pretendem estabelecer que há uma indissociável ligação do mal,
do demônio ou de uma indigitada legião de demônios com as manifestações
religiosas de matriz africana. Para se ter uma ideia dos conteúdos, em
um dos vídeos, um pastor diz aos presentes que eles podem fechar os
terreiros de macumba do bairro. Em outro, ele afirma que não existe como
alguém ser de bruxaria e de magia negra, ou ter sido, e não falar em
africano.
No fim do ano passado, o MPF promoveu uma audiência
pública para debater a questão com a sociedade. Com o tema "Liberdade
religiosa: o papel e os limites do Estado e dos meios de comunicação", o
evento discutiu a função do poder público e dos meios de comunicação
para garantia da liberdade de consciência e pensamento e da
inviolabilidade de crença religiosa.
Assessoria de Comunicação Social
Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro
Tels.: (21) 3971-9488/9460
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TEXTO 3
"Religiões afro-brasileiras, uma questão filosófica", texto de autoria de Nei Lopes, originalmente publicado em Blog do IMS, em 18/05/2014.
Em junho de 1993, a Suprema Corte dos Estados Unidos garantiu aos
praticantes de cultos de origem africana o direito de sacrificar animais
em suas cerimônias religiosas. Esse relevante fato histórico deveu-se,
certamente, à articulação das casas de culto de origem cubana
estabelecidas no país a partir da década de 1950, as quais na década de
1970 já tinham, entre si, a Church of The Lukumi Babalu Ayé, a qual se
propunha, quando de sua fundação, a ter sede, escola, centro cultural e
museu, para sua comunidade e público em geral. Na contramão de
conquistas como essa, no Brasil atual chega-se a negar aos cultos
afro-originados até mesmo a condição de religiões.
Filosofia. Em 1949 era publicado em Paris o livro La philosophie bantoue,
obra em que o padre Placide Tempels dava a conhecer o resultado de suas
pesquisas de campo realizadas no então Congo Belga. Contrariando toda
uma concepção preconceituosamente negativa a respeito do pensamento dos
povos africanos, o livro revelava a existência, entre os pesquisados, de
uma filosofia baseada na hierarquia das forças vitais do Universo, a
partir de uma Força Superior. Assim, quanto aos seres humanos, aprendia o
missionário, entre outros postulados, que todo ser humano constitui um
elo vivo na cadeia das forças vitais: um elo ativo e passivo, ligado em
cima aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando, abaixo de si, a
linhagem de sua descendência. Consoante esses princípios, todos os
seres, vivos ou mortos, se inter-relacionam e influenciam. E a
influência da ação de forças tendentes a diminuir a energia vital se
neutraliza através de práticas que façam interagir harmonicamente todas
as forças criadas e postas à disposição do homem pela Força Suprema.
Meio século depois, outro missionário, o padre espanhol Raúl Ruiz
Altuna, pesquisando a partir de Angola, conseguia estabelecer outra
hierarquia, traduzida nos seguintes ensinamentos:
A Força Suprema reconhecida pelo pensamento africano corresponde ao
Ser Supremo das religiões monoteístas. Criador do universo e fonte da
vida, esse Ser infunde respeito e temor. Mas é tão infinitamente
superior e distante que não é cultuado, ou seja: não pode nem precisa
ser agradado com preces nem oferendas. Abaixo desse Ser situam-se, no
sistema, seres imateriais livres e dotados de inteligência, os quais
podem ser gênios ou espíritos.
Os gênios são seres sem forma humana, protetores e guardiões de
indivíduos, comunidades e lugares, podendo temporariamente habitar nos
lugares e comunidades que guardam, e também no corpo das pessoas que
protegem. Já os espíritos são almas de pessoas que tiveram vida terrena
e, por isso, são imaginados com forma humana. Podem ser almas de antigos
chefes e heróis, ancestrais ilustres e remotos da comunidade, ou
antepassados próximos de uma família.
Ao contrário do Ser supremo, gênios e espíritos precisam ser
cultuados, para que, felizes e satisfeitos, garantam aos vivos saúde,
paz, estabilidade e desenvolvimento. Pois é deles, também, a incumbência
de levar até o Deus supremo as grandes questões dos seres humanos.
Assim, já que contribuem também para a ordem do Universo, eles devem
sempre ser lembrados, acarinhados e satisfeitos, através de práticas
especiais. Essas práticas, que representam um culto em si, podem, quando
simples, ser realizadas pelo próprio interessado. Mas, quando
complexas, devem ser orientadas e dirigidas por um chefe de culto, um
sacerdote.
Dentro dessas linhas gerais, segundo entendemos, foi que se desenvolveu a religiosidade africana no Brasil e nas Américas.
Relevância. Os estudos dos padres Tempels e Altura
desenvolveram-se entre povos do grupo Banto, do centro-sudoeste
africano. Mas outros estudos, inclusive de sábios e cientistas nativos,
nos deram conta de que, embora as religiões negro-africanas tenham suas
peculiaridades, todas elas comungam de uma ideia central, a da
inter-relação entre as forças vitais, sendo vivenciadas segundo
princípios comuns.
Por conta dessas formulações, em 1950, no texto Philosophie et religion des noirs (revista Présence Africaine,
nº especial 8-9), o antropólogo francês Marcel Griaule primeiro
indagava se seria possível aplicar as denominações “filosofia” e
“religião” à vida interior, ao sistema de mundo, às relações com o
invisível e ao comportamento dos negros. Perguntava-se, ainda, sobre a
existência de uma filosofia negra distinta da religião e de uma religião
independente, de uma metafísica, enfim.
Ao final de sua indagação, o cientista afirmava a existência de uma
verdadeira ontologia (parte da filosofia que estuda a existência)
negro-africana, concluindo pela antiguidade do pensamento nativo,
nivelando algumas de suas vertentes a concepções filosóficas asiáticas e
da Antiguidade greco-romana; e ressaltando a necessidade e a
importância do estudo desse pensamento. Quatro décadas depois, o já
citado Altuna, fazendo eco a Griaule, afirmava: “Basta debruçarmo-nos
sobre esse conjunto de crenças e cultos para encontrar uma estrutura
religiosa firme e digna”.
Definição. O termo “religião”, segundo N. Birbaum, referido no Dicionário de Ciências Sociais
publicado pela Fundação Getúlio Vargas, em 1986, define um conjunto de
crença, prática e organização sistematizadas, compreendendo uma ideia
que se manifesta no comportamento dos seguidores. Daí aferimos que toda
religião se define, em princípio, por um culto prestado a uma ou mais
divindades; pela crença no poder desses seres ou forças cultuados; e em
uma liturgia, expressa no comportamento ritual; e finalmente pela
existência de uma hierarquia sacerdotal.
Pelo menos desde meados do século XIX, as religiões chegadas da
África ao Brasil, apesar de todas as condições adversas, conseguiram
recriar, no novo ambiente, as crenças e as práticas rituais de sua
tradição ancestral, dentro dos princípios científicos que definem o que
seja religião.
Na própria África já se distinguia, por exemplo, o feiticeiro (ndoki, entre os bantos), agente de malefícios, do ritualista (mbanda ou nganga),
manipulador das forças vitais em benefício da saúde, do bem-estar e do
equilíbrio social de sua comunidade. E no Brasil, como em outros países
das Américas, as diversas vertentes de culto chegaram a tal nível de
organização que constituíram, de modo geral, categorias sacerdotais
altamente especializadas. Por exemplo, no candomblé: um babalorixá (“pai
daquele que tem orixá”, e não “pai de santo”, como se traduziu
derrogatoriamente) não tem a mesma função de um “babalaô” (“pai do
segredo”), responsável por interpretar as determinações do oráculo Ifá.
Uma equede (sacerdotisa que atende os orixás quando incorporados) não
tem as mesmas funções de uma iá-tebexê (a responsável pelos cânticos
rituais). Da mesma forma que um axogum (sacrificador ritual) não tem as
mesmas funções de um alabê (músico litúrgico), por exemplo.
As religiões de matriz africana no Brasil, em suas várias vertentes,
praticam uma liturgia complexa, que compreendem rituais privados e
públicos. Nas práticas privadas, todo ritual se inicia pela invocação
nominal dos ancestrais, remotos e próximos, dos fundadores do templo, em
listas tão mais longas quanto mais antigo for o “fundamento” da casa.
Nas festas públicas, notadamente no chamado candomblé jeje-nagô, oriundo
da região africana do Golfo do Benin, as divindades (orixás ou voduns)
se manifestam numa ordem rigorosamente obedecida, da primeira à última a
entrar na roda das danças. E por aí vamos.
Constitucionalidade. Não é o monoteísmo que
caracteriza uma religião. Se assim fosse, as religiões orientais como o
hinduismo, o taoísmo etc. não seriam como tal consideradas. Muito menos o
é a circunstância de as práticas religiosas serem ou não baseadas em
textos escritos. A propósito, o historiador nigeriano I.A. Akinjogbin,
em artigo na coletânea Le concept de pouvoir em Afrique (Paris,
Unesco, 1981), assim se manifestou: “O conhecimento livresco tem um
valor formal e importado, enquanto o saber informal é adquirido pela
experiência direta ou indireta. Os conhecimentos livrescos não conferem
sabedoria (…) O ensinamento tradicional deve estar unido à experiência e
integrado à vida, até porque há coisas que não podem ser explicadas,
apenas experimentadas e vividas”.
Vejamos, em conclusão, que toda a tradição africana de culto aos
orixás, da qual no Brasil se originaram principalmente o candomblé da
Bahia (nagô e jeje), o xangô pernambucano, o batuque gaúcho e a umbanda
fluminense, tem uma base filosófica. Esse fundamento é, em essência, o
vasto conhecimento que emana da tradição iorubana de Ifá, o oráculo que
tudo determina, em todos os momentos da vida de uma pessoa, de uma
família, de uma cidade, de uma nação etc. Da tradição de Ifá é que vêm,
por exemplo, a origem dos orixás, sua mitologia, suas predileções, suas
cores etc. O popular jogo de búzios é uma forma simplificada de consulta
ao oráculo.
Esse corpo de doutrina, compreendendo muitos milhares de parábolas,
foi transmitido de geração a geração entre os antigos babalaôs, na
África e nas Américas. E nos tempos atuais, embora não unificado, já
começa a ter circulação inclusive na internet.
Pois essa tradição remonta a muitos séculos; e sua história se conta a
partir do momento em que Oduduá, o grande ancestral dos iorubás, cuja
presença histórica, no século XII d.C., é atestada cientificamente (cf.
A. F. Ryder, História Geral da África, Unesco/MEC/UFScar, vol.
IV, 2010, p. 389), após fundar a antiga cidade de Ifé, enviou seus
diversos filhos em várias direções, para fundar cada um o seu reino.
Mas esta é apenas uma parte da alentada e sábia tradição religiosa
que os antigos africanos legaram ao Brasil. A qual, como um todo, goza
da proteção constitucional do artigo 5º da Constituição Federal, bem
como daquela assim enunciada: “O Estado protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos
participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215, parágrafo
1º).
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